Foto: Thiago Mucci
Veja outros artigos relacionados a seguir
Maria de Lourdes Ribeiro Augusto adquiriu, ao longo dos 15 anos de reciclagem, o hábito de dar “broncas” em leigos que perguntam a ela como é trabalhar com o lixo produzido na região do Tatuapé. Em regra, a questão é respondida de chofre: “Nada aqui é lixo, porque lixo não serve para nada. Trabalhamos com materiais que podem e devem ser reaproveitados”.
A frase é ríspida somente à primeira vista, pois sempre vem acompanhada do primeiro de vários sorrisos que permeiam sua conversa. A aparência dura de Maria, que aos 53 anos é a tesoureira e presidente em exercício da Cooperativa Central Tietê, é apenas fachada da mãe de cinco filhos e avó de três netos que está à frente de uma operação que reúne 34 profissionais e uma produção mensal de 75 toneladas de recicláveis.
Uma senhora com paciência para ensinar a importância ambiental da reciclagem – algo ainda muito desconhecido dos brasileiros, segundo pesquisa divulgada em junho pelo Ibope.
A história da Central Tietê se confunde com a de Maria e do próprio cooperativismo paulistano no que diz respeito à coleta seletiva. É uma das cooperativas mais antigas – sim, 15 anos é bastante tempo de vida neste ramo que apenas engatinha no país.
A Central foi criada em 2003, com auxílio da Prefeitura. Desse início, dos 24 cooperados (a maioria carrinheiros e coletores autônomos), somente Maria permanece.
Situada numa área da Prefeitura que abriga também o Ecoponto Tatuapé, na Marginal Tietê, a entidade vivenciou altos e baixos nesta década e meia. “Já chegamos a ter cerca de 100 cooperados em dois turnos de trabalho, quando havia uma empresa da prefeitura que operava a coleta especificamente para a gente”.
À época, chegou-se a processar 130 toneladas. No entanto, curiosamente, a renda não era maior do que é hoje.
“Cada cooperado, inclusive o presidente, chega a tirar de um salário mínino a R$ 1.100 por mês”, conta.
Maria aponta a questão dos preços como a grande dificuldade envolvendo a reciclagem. Ela reforça uma opinião já evidenciada por outros cooperados. “Nós não conseguimos valores melhores porque não temos união entre as cooperativas”, resume.
Em outros termos: se todas as organizações vinculadas à Amlurb, a autoridade municipal de limpeza urbana, se juntassem, ganhariam escala e teriam maior poder de barganha. “Hoje, cada um negocia seu preço.”
Maria diz que o plástico é o principal ativo do mercado da reciclagem, em termos da relação de volume versus valor agregado. Mas, no caso das garrafas PET, por exemplo, a diferença de preço chega a ser de 15 centavos, o que beira os 10%.
O quilo do material é comprado de R$ 1,85 a R$ 1,90 pelos atravessadores, segundo Maria. E poderia ter um ágio de trinta ou quarenta centavos – 20% de ganho – se as indústrias comprassem diretamente das cooperativas. Para o plástico e outros materiais, a variação pode ser elástica como a borracha, para azar dos cooperados, o polo mais fraco da cadeia econômica da logística reversa.
Apesar do cenário difícil, a cooperativa soma vitórias. Uma delas é ter conseguido comprar suas próprias máquinas, via financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Neste rol, estão a esteira de triagem, uma empilhadeira e uma caminhonete. Há também as prensas, cedidas em comodato ou emprestadas por parceiros.
O pequeno caminhão é responsável, frise-se, por coletar 20 das 75 toneladas mensais que a cooperativa processa. O restante é proveniente da coleta seletiva, operada no Tatuapé pela concessionária Loga.
Mas não é só de trabalho que se vive. É preciso investir na requalificação das pessoas. Por isso, nos últimos meses, oito dos 34 cooperados passaram, após as 8 horas diárias de trabalho, a cursar por dois dias da semana um programa de alfabetização do Instituto Paulo Freire patrocinado pela Samsung – a iniciativa também está presente em outras cooperativas.
O curso é apenas uma das iniciativas que denotam o espírito da Central Tietê, onde a inclusão é a regra e por onde já passaram diversos ex-presidiários, dependentes químicos, alcoolistas e pessoas que vivem à margem da sociedade organizada e do mercado de trabalho.
“Eu vejo como função das cooperativas dar trabalho a esta gente”, aponta Maria. “Tive recentemente um rapaz que saiu daqui, recebeu pagamento, torrou em drogas, foi roubar e acabou preso, mas posso garantir que as portas estarão abertas quando ele sair da cadeia.”
A presidente não teve problemas com a lei. Natural de Pracinha, uma cidade pequena como o nome, situada na região de Marília, Maria deu duro na roça. Depois, em São Paulo, foi doméstica e diarista. Quando seu quinto filho nasceu, ficou fora do mercado por dois anos até ver no início da Central Tietê uma chance de voltar a ter uma renda, ao saber do novo negócio por meio de uma irmã mais velha, à época também cooperada. “Estava difícil e vi uma chance. Foi aí que despertei a consciência ambiental.”
A vida dura de Maria é um conto de fadas perto da de Rosemeire Elias Maila. Aos 33 anos, mãe de cinco filhos, ela é hoje uma das diretoras da cooperativa, onde começou há cinco anos depois de um histórico nada fácil com drogas.
De origem pobre, engravidou pela primeira vez aos 16 anos – realidade ainda presente no país com a maior taxa de gravidez na adolescência na América do Sul, segundo dados do Unicef e Organização Mundial da Saúde.
Depois, começou a gostar de fumar maconha e beber. “Aí, entrei na farinha (cocaína) e com 20 e poucos anos comecei a roubar à mão armada para sustentar o vício.”
Sem a coragem de atirar para matar, ela logo “rodaria”, como se diz na gíria do crime. Condenada a dois anos e meio de cadeia, cumpriu dez meses. “Fui para o semiaberto porque minha filha estava na UTI com insuficiência renal.”
Seria o fim da linha para o uso da cocaína, mas a maconha continuaria a fazer parte de sua vida, junto com o álcool e subempregos. O último deles foi passar “rodinho” no vidro de centenas de carros que passam pelo cruzamento da Marginal Tiete com a Avenida Salim Farah Maluf.
“Eu era uma daquelas pessoas que infernizava a paciência dos outros para conseguir uns trocados”, ri a Rosemeire de hoje, há cinco anos longe das drogas.
Ela é um dos exemplos que, às dezenas, se somam à história da Central do Tietê, que reúne 22 mulheres para 12 homens. “Se você for ver a história das cooperativas, vai ter um perfil básico que é o seguinte: mulher com filhos para criar sem o marido por perto, que saiu do lar”, resume Maria. “É por isso que, na indústria da reciclagem, o ingrediente humano não pode nunca ser deixado de lado.”
Decisão ocorre após pressão nacional de catadores contra risco de concorrência injusta
Estudo indica que setor tem potencial para triplicar postos de trabalho no país
Projeto promove educação ambiental e transforma resíduos tóxicos em artesanato
Iniciativa oferece remuneração via Pix pela entrega de materiais recicláveis