Foto: Thiago Mucci
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Tudo começou com um trabalho de mobilização da juventude da comunidade da Vila Prudente. Realizada pela Igreja São José Operário, a Recifavela virou em 11 anos a primeira cooperativa a funcionar 24 horas, em regime de gestão de pessoas baseado nas empresas Y. Essas instituições, como o Google e as modernas startups de tecnologia, trabalham com metas, horários flexíveis e ganham por produção.
É uma cooperativa pioneira. Ela atua com os 41 cooperados, que chegam a ganhar até R$ 3 mil por mês de acordo com o que produzem. “Todos têm a chave da cooperativa e se quiserem fazer um turno extra, podem chegar aqui às madrugadas, sábados, domingos e feriados para trabalhar”, explica Cristiano Gonçalves Cardoso, 33 anos, um ex-camelô fundador e atual presidente da cooperativa.
A produção – como a pesagem dos materiais triados na esteira – é medida eletronicamente. Um painel digital no centro do galpão expõe, à vista de todos e em tempo real, o que cada funcionário separou e o quanto vai obter de retorno financeiro. “Ele sabe o quanto produziu, o quanto vai ganhar e pode se programar para trabalhar mais quando quiser.”
A meta de cada cooperado é processar 350 quilos por dia e quem superar a marca recebe um bônus no vale-refeição. Hoje, a cooperativa consegue vender 100 toneladas mensais de resíduos, mas o objetivo é chegar a 500 toneladas a médio prazo.
No ambiente da Recifavela, a meta ambiciosa convive com características encontradas em empresas modernas. A entidade tem uma área de lazer com mesa de sinuca e pebolim, além de uma biblioteca com mais de 100 volumes. O uso da área é liberado a qualquer hora do dia, como acontece nas empresas localizadas no Vale do Silício, na Califórnia. Além do painel no meio do galpão, um aplicativo de celular permite a cada cooperado saber qual o seu status de produção e renda.
Localizada no galpão de uma fábrica desativada da Vila Prudente, cujo aluguel é pago pela Prefeitura, a Recifavela também adotou uma cadeia de produção moderna. “Usamos o fordismo (sistema de produção baseado na linha de montagem criada por Henry Ford, fundador da Ford Motors Company) e estamos adotando o toyotismo (um modelo de produção industrial), para zerar, em um mês, o estoque do que recebemos”, diz Cristiano.
Como os membros da geração Y, termo com o qual o mundo corporativo batizou as pessoas jovens que chegam ao mercado de trabalho com expectativas e ambições não-tradicionais, Cristiano optou pela inovação e planos ousados.
Semianalfabeto, idealizou uma loja virtual, que funciona dentro do site da cooperativa e vende produtos recicláveis com a marca da entidade. Depois, veio a ideia de criar um banco de fomento social, feito em parceria com o Banco Digital Maré, da Favela da Maré no Rio de Janeiro, que permite as cooperativas realizarem e receberem pagamentos em bitcoins, uma moeda virtual. A instituição criou sua própria moeda, chamada de Palafita, em homenagem aos primeiros moradores da comunidade carioca.
“O banco permitirá que um investidor empreste dinheiro com o pagamento de juros a 14%”, explica Cristiano, que bolou a criação do empreendimento num trabalho de conclusão do curso técnico que fez pelo Instituto Paula Souza.
Mas as ideias de Cristiano não param por aí. Ele pretende que a loja virtual da cooperativa seja futuramente abastecida por uma fábrica que a Recifavela deve criar até o ano que vem. “No início, planejamos processar granulados plásticos, que serão vendidos à fábrica pela cooperativa”, diz Cristiano. “A ideia é contratar pessoas daqui ou da comunidade e, posteriormente, fabricar utensílios para serem vendidos na loja virtual.”
A Recifavela, apesar de apostar em ferramentas de gestão modernas, tem como bandeira a inclusão social. “Quanto mais dinheiro se obtiver com o sucesso das vendas e dos serviços, como o banco e a loja, mais gente será incluída no processo, com renda maior. “
Como outras cooperativas visitadas pelo Recicla Sampa, a Recifavela abriu suas portas para ex-dependentes, ex-presidiários, membros da comunidade LGBT e até refugiados.
Um destes personagens, cujo nome não será revelado, é um ex-presidiário de 41 anos, que ficou preso por 12 anos, por homicídio e roubo. “Também fui traficante e matei algumas pessoas, mas fui salvo pela oportunidade da Recifavela”, diz.
Ele conta que chegou a ganhar (e perder) milhares de reais no crime, mas quando iniciou o trabalho na cooperativa, parou de usar drogas e hoje é missionário religioso (evangélico).
“Dou testemunho da minha história porque minha meta é tirar pessoas da vida do crime.”
“Aqui temos aulas de dança, muay thai, inglês e também psicólogos, alfabetização e inclusão digital para os cooperados e para a comunidade”, explica Cristiano. “Vamos começar com francês, que será ministrado por uma ex-presidiária portuguesa que fala cinco idiomas.”
Para ampliar os projetos sociais e alavancar a meta de chegar às 500 toneladas de produção, Cristiano pretende realizar uma coleta seletiva integral, que atenda às 1.400 famílias da Vila Prudente. Em um breve cálculo, chegou à conclusão de que cada uma delas pode gerar 3 quilos por dia de resíduos recicláveis – 126 toneladas mensais.
Sendo assim, os moradores poderão doar voluntariamente o material ou vendê-lo em pontos de coleta da Recifavela. “A venda do que for doado será revertida a projetos da comunidade”, explica. “O que o morador vender, ele obtém de renda.” Um quarto da favela da Vila Prudente já está no programa e tem resultado em uma média de quatro toneladas semanais de recicláveis.
O próximo passo será implantar o programa na comunidade de Heliópolis, a maior da capital com 100 mil habitantes.
“Quero mostrar que é possível fazer coleta seletiva em favela com a capacitação e educação ambiental dos moradores.”
Dentre outros planos da cooperativa está a compra de um caminhão compactador – semelhante aos usados pelas concessionárias do transporte público – para a realização de uma coleta seletiva paralela na região da Vila Prudente e aumentar, consequentemente, a produção. “Vamos mostrar ao poder público que é possível fazer uma coleta seletiva com melhor qualidade, aliada à educação ambiental”.
Quem chega à Recifavela, vê um ambiente limpo, com o interior do galpão tratado com umidificadores. A organização impera e, como funciona 24 horas, há controle digital remoto da entrada e da saída das pessoas.
O progresso, diz Cristiano, foi conseguido com muito esforço. No início, eram apenas cinco cooperados que ficaram seis anos sob o Viaduto Grande São Paulo. “Quando o Tamanduateí enchia, perdíamos tudo.”
A cooperativa nasceu por incentivo do padre irlandês Patrick Gerard Clarke, da Congregação do Espirito Santo e vigário paroquial da Igreja São José Operário. Com inspiração doutrinária na Teologia da Libertação, um grupo de jovens que atuavam na comunidade católica da favela, dentre eles Cristiano, foi à Jornada Mundial da Juventude de 2005, na Alemanha.
Depois de 22 dias no exterior, eles tinham que propor algo que beneficiasse a comunidade. Foram necessários mais alguns cursos de verão ministrados pelo Centro de Serviços à Evangelização e Educação Popular nas dependências da PUC para os rapazes e moças se encantarem pelo cooperativismo. Surgiu assim a ideia de montar uma cooperativa para gerar renda.
A ideia da reciclagem partiu da necessidade de dar emprego aos jovens e a um grupo de carrinheiros de uma favela que havia sido removida, embaixo do Viaduto da Grande São Paulo. “No entanto, do grupo inicial, que tinha 15 jovens e 10 catadores, sobraram só cinco com vontade de ‘colocar a coisa para funcionar’.”
Nascido e criado na Favela da Vila Prudente, onde mora até hoje, Cristiano atuou até 2008 como marreteiro. “Fui camelô desde os 11 anos e vendia CDs piratas. ” Filho de um pai alcoolista que batia na mãe e nos irmãos, fora para as ruas em busca de independência. No entanto, depois de cansar dos “rapas” (operações de apreensão de produtos irregulares) e de pagar propinas para manter o comércio ilegal, abraçou o cooperativismo, fez cursos de liderança e se tornou o mentor da Recifavela.
O primeiro ano foi difícil para os cinco integrantes que deram origem à cooperativa. Eles conseguiram um financiamento de um grupo de empresas para comprar uma Kombi usada. “A perua chegou em janeiro de 2009 e tudo que ganhávamos (os cinco) era para pagar o carro”, lembra. “Em dezembro, conseguimos fazer R$ 50,00 e, em fevereiro de 2010, subimos para R$ 110,00.”
Sob o viaduto foram seis anos. A cooperativa cresceu e chegou a pagar R$ 1.500 para cada um dos membros. “Mas as condições eram precárias. Não havia água encanada nem banheiro e quando dava enchente, tínhamos até que amarrar a Kombi, porque perdíamos toda a produção, arrastada pelas águas”, conta Cristiano.
Em 2013, a cooperativa conseguiu que a prefeitura custeasse a locação do galpão atual. “Tudo que nós tínhamos no viaduto cabia num caminhão.” Para equipar o espaço houve apoio do Rotary Club Vila Alpina, que investiu R$ 250 mil a fundo perdido para compra de uma esteira e prensas.
A Petrobrás também patrocinou o projeto com R$ 1,5 milhão obtido via Rede Paulista de Cooperativas, entidade à qual a Recifavela é filiada com outras oito cooperativas. Foi estruturado também o planejamento estratégico da cooperativa, onde foi criado metas de expansão e diversificação das atividades como, por exemplo, a venda de serviços de coleta. Um trabalho que pode ser resumido com a frase “Para muitos, lixo. Para nós, um meio de vida”, conforme indica a camisa de um dos cooperados.
A Recifavela fica na Rua Capitão Pacheco e Chaves, 108 – Vila Prudente
Os telefones de contato são (11) 4114-8692 e (11) 3435-2655
Materiais reciclados: papel, plásticos (todos), vidros, metais comuns, papelão e isopor.
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