Material separado para reciclagem. Foto: Thiago Mucci
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Os afiliados da cooperativa de reciclagem Recicla Butantã têm o privilégio de ter uma segunda mãe. Heloisa Vitorino dos Santos, de 59 anos, é assim chamada não só pelos seis filhos e filhas naturais (duas das quais trabalham na entidade), mas pelos 43 cooperados que mensalmente processam 150 toneladas de resíduos sólidos.
A trajetória de Heloísa se confunde com a da formação das primeiras cooperativas em São Paulo. Ela é a única remanescente do grupo de catadores que, há cerca de 20 anos, foi reunido pelo padre José Carlos de Freitas Spínola na praça Cornélia, na Vila Romana.
O grupo deu origem ao que seria a Recicla Butantã, uma das primeiras cooperativas da Capital. “A maioria do pessoal daquela época morreu ou teve outro destino”, diz Heloisa. “E eu virei a mãe deste pessoal, que considero minha família.”
A história de Heloísa é um exemplo que sintetiza a vida de muitos trabalhadores em cooperativas. Daria um livro, pelos sofrimentos passados e capacidade de resiliência demonstrada ao longo de décadas.
A começar pela infância. “Não fui criada pelos meus pais”, diz, mas adotada por uma “família que judiava de mim”. Aos 12 anos, fugiu de casa e foi abrigada por outra família – esta, sim, carinhosa, mas sem condições para dar lastro de desenvolvimento para a menina que, ainda aos 14, engravidou do primeiro filho.
Com a maior incidência de gravidez na adolescência, o Brasil daquela época não exergava o fenômeno com aceitação. Helô foi morar com o companheiro com quem teria mais dois filhos e pelo qual seria abandonada aos 20 anos. Chegou a quase passar fome, morou em favelas (“a gente invadia, fazia barracos mas vinham e demontavam”) e lavava roupas para os vizinhos a fim de garantir o sustento.
A sorte veio a lhe sorrir quatro anos depois, quando se casou novamente (“de papel passado”), teve mais quatro crianças e viveu cerca de dez anos de paz emocional e financeira. “Era o amor da minha vida, me dava de tudo, mas morreu de enfarto aos 33 anos, em 1992.”
A morte do marido fez com que Heloísa – uma analfabeta que fala um português impecável para quem não domina a norma culta da língua – fosse trabalhar de faxineira até tentar a vida como cozinheira.
Começou profissionalmente na atividade num restaurante mantido pelos ex-craques de futebol e irmãos Sócrates (1954-2011) e Raí. “Eles são ótimas pessoas, mas não queriam me aceitar porque era analfabeta”, recorda. “Aí, implorei para fazer um teste”.
Uma semana de trabalho e estava contratada. “Disseram que eu era a melhor atendente e que não sairia de lá por nada”.
Foram sete anos de trabalho contínuo. “Mas fiquei doente, com hipertensão e não conseguia mais trabalhar em cozinha, naquele ritmo”. Pediu para ser demitida e até hoje cozinha para Raí sua “feijoada light” quando é solicitada.
Fora da cozinha, encontrou o padre José Carlos e descobriu a reciclagem. “Comecei lá na igreja e hoje não me vejo fazendo outra coisa”, diz Heloísa, que já foi presidente da Recicla Butantã e hoje passou o comando para a filha, Viviane.
Na prática, contudo, a liderança carismática da “mãe” fala mais alto. De fala empolgada, Helô tem o perfil carinhoso, mas sabe ser dura no trato quando precisa impor disciplina. E, apesar do analfabetismo, diz ser perita em cálculos. “Ninguém nos passa a perna em um centavo. E olha que só sei somar e subtrair.”
Heloísa aprendeu também a fazer parcerias e a valorizar o meio ambiente.
“Nós aqui não trabalhamos com lixo e sim com uma fonte de riquezas que alimenta famílias”.
Também procurou retribuir o que obteve na vida. “Adotei três crianças e só não adoto mais porque já estou com idade”, afirma. “Fiz isso pelo acolhimento que tive da segunda família que me recebeu quando ainda era jovem.”
A Recicla Butantã abriga mais mulheres (27 dos 43 membros) que homens. E divide um terreno e um galpão com outra entidade, a Vira Lata, localizada no Jardim Olympia, próximo à Rodovia Raposo Tavares, na região do Butantã (zona oeste de São Paulo).
“É a única que tem três pontos de coletas (PEVs) autônomos fora da cooperativa e com dois cooperados trabalhando”, destaca Evelin Siqueira Bastos, de 33 anos, secretária e responsável pelo administrativo da Recicla Butantã.
Os PEVs, somados a um caminhão que faz a busca de resíduos para quem tiver materiais armazenados, respondem por 70 das 150 toneladas processadas mensalmente. O restante é proveniente da coleta seletiva, realizada pela empresa Loga na região da entidade.
O volume de trabalho garante cerca de um salário mínimo a cada cooperado. “Em meses bons, pode-se chegar a R$ 1 mil”, diz a secretária.
Com um casal de filhos, ela foi parar na cooperativa depois que a menina, hoje aos 4 anos, foi cometida por uma doença rara, em 2016. “Começamos a gastar muito com o tratamento e agarrei esta oportunidade de trabalho”, conta. “Faço o administrativo, mas quando é preciso vou para a esteira (de separação de materiais) também.”
Como todos os demais cooperados – inclusive os que têm mais de 50 anos – trata Heloísa como se fosse “mãe”.
A “mãe” reconhece que viver de cooperativismo é difícil e permite que os cooperados fiquem com itens que às vezes aparecem na esteira, mas que não servem para reciclar. “Você não acredita, mas chega a vir roupa nova, etiquetada, no lixo. Eu libero para quem achar vender ou usar. É uma forma de compensação.”
Apesar de não saber ler, Helô tem a perfeita noção do que é economia de escala quando fala da questão dos preços obtidos pelas cooperativas – mais baixos quando vendidos a atravessadores, conforme afirmam vários diretores de cooperativa.
O Recicla Sampa pergunta a ela por que as cooperativas não se juntam para ganhar volume de vendas, e obter, com isso, maiores ganhos. Dada em voz doce, a resposta é dura na análise da integração entre as entidades. Sem citar nomes, crava: “Porque falta humildade (às demais cooperativas).”
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